Algumas lembranças de quando a gente se dava bem fazendo o pouco que conseguia

mac
9 min readJan 4, 2020

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Ou “algumas coisas que eu deixei de fora do texto ‘Lennon/Caulfield/McCartney’”. (isso é quase um lado B.)

Feliz ano novo.

(PARTE I E II):

Uma vez, quando eu era bem pequeno, eu tive um desses pesadelos que você acorda meio confuso, sem entender o que aconteceu. Eu estava preso dentro de um vagão de trem muito escuro, com um montão de morcegos voando lá dentro, desesperados. E o trem andava muito rápido no meio do deserto… Eu olhava pela janela e não via absolutamente nada além de areia e montanhas, bem longe... E dava pra ouvir alguém gritando, gritando bem alto mesmo. Mas não era eu. vinha lá de fora, do meio do deserto, ou talvez de outro vagão. Mas não era eu. Na verdade eu odeio admitir isso, mas meio que eu tinha tudo sob controle. Algo dentro de mim dizia pra simplesmente ignorar o desconforto e ficar olhando a paisagem. Sei lá, vai que o destino da viagem era um lugar legal. Qualquer coisa era só acordar.

Agora falando de flashbacks de novo. Eu sei que esse assunto deve ser muito chato, porque no fim das contas ele é fundamentalmente sobre experiencias pessoais, e independente do tanto que eu fique tentando falar delas, nunca vai ser algo muito fácil de entender. É igual quando alguém acorda e corre super empolgado pra primeira pessoa que encontra no café da manhã, pra contar o sonho super interessante que teve. O ouvinte nunca fica muito entretido, ele olha pra torrada, depois pro café… e fala algo genérico, como um vago e vazio de significado “interessante…”, e depois esquece completamente do que você falou, se é que ele ouviu mesmo pra começo de conversa. Mas a culpa nem é dele, na verdade. Não tem como saber exatamente como o sonho foi, nem se aquilo aconteceu de fato, e sinceramente, quem liga se aconteceu de fato? É a porra de um sonho. Na verdade é óbvio que não aconteceu de fato! é tudo entretenimento, um devaneio do subconsciente pra te distrair de noite, e você não acordar… Mas agora falando dos flashbacks mesmo. Eu lembro quando eu era criança e ainda tinha espaço dentro da minha cabeça pro meu cérebro crescer. É sério. Era quase como se eu tivesse espaço pra espreguiçar dentro do caixão. Eu tenho saudade de ir pra escola, de quando escolhiam as coisas por mim, quando minha única tarefa era crescer. Eu tanho saudade de quando eu conseguia fazer muito pouco, muito pouco mesmo, mas também de quando isso era o suficiente. Eu tenho saudade de quando não criavam expectativas em mim, e principalmente de ainda não ter criado nenhuma em ninguém. E também era muito bonito ver as coisas pela primeira vez, aprender algo novo, e poder usar isso quando precisasse. Era muito legal ter espaço sobrando em volta e poder pensar “Uau! Olha quanto ar pra respirar…”. Era legal ficar surpreso com alguma característica minha que eu ainda não conhecia. E era divertido descobrir minhas falhas também. O que eles não me contaram foi que depois de certa idade, aprender e experimentar coisas novas começa a ser mais um tipo de obrigação do que um tipo de diversão. A gente começa a parar de descobrir coisas novas e começa a ficar redescobrindo tudo que a gente já conhece. Toda essa necessidade de estar sempre fazendo algo, tendo respostas, sabendo coisas… Isso tem me deixado meio com preguiça de pensar, sinceramente.

É difícil encontrar um motivo pra acordar, quando o mundo não parece ser muito maior do que um ovo. É difícil encontrar qualquer coisa quando suas viagens tem uns cinco metros de distância, quando parece que você já cresceu pra todos os lados. O que é mais dificil ainda, é saber que ainda tem muito pra ver por ai, mas você coloca tanto seu coração dentro de tudo que você faz, que parece que não sobrou nem uma gota de sangue pra ser derramado no ano que vem pela frente. Você já morreu várias vezes.

Eu tenho saudade de quando todo problema parecia importante. Não tinha nenhuma fórmula matemática de causa-consequência tão previsível quanto tem agora, mas era meio divertido pensar que cada obstáculo na minha frente estava lá por algum motivo. Era legal se apaixonar por algo (ou alguém) só por se apaixonar mesmo. Eu mal consigo me lembrar agora, mas eu tinha o costume de entregar meu coração pras pessoas simplesmente porque me davam a oportunidade de fazer isso.

TUDO QUE EU SEI SOBRE CAUSA E CONSEQUÊNCIA:

E acordar já foi mais fácil. Pegar no sono também, mas acho que estar desacordado tem sido tão precioso pra mim esses dias, que a hora de despertar virou um inferno completo. Eu sinto que eu poderia reclamar do quanto eu tenho saudade de passar um tempo sozinho comigo mesmo, mas acho que eu não estaria sendo honesto. Eu passo o tempo inteiro sozinho comigo mesmo. Mas saudade mesmo eu tenho é de quando isso era agradável, quando isso funcionava pra recarregar minha energia pra voltar em cena depois… E é como eu disse pro lagarto no meu microondas, certa vez:

“Respirar já foi muito mais fácil também. Nesses finais de dias estranhos que o sol se põe antes da hora marcada e deixam o ar mais pesado de ansiedade e tão cheio de micro-impurezas e venenos tóxicos quem vieram sei lá de onde, eu sempre fico com a quase certeza de que tem algo errado acontecendo. Teve um momento de duração limitada quando eu podia simplesmente puxar um pouco de oxigênio e contar até dez, e tudo voltava ao normal, sem drama, sem dar meia-volta. Sem que meu espírito entrasse em combustão espontânea e eu começasse a me questionar se minha cabeça ainda tava no lugar certo. Tinha até um certo prazer em saber que ainda dava tempo de ficar tudo bem, por pior que estivesse, e lidar com o frio era até bem confortável… Só fechar as janelas, deitar um pouco. Não tinha erro. Quando era pra chover, chovia. E quando chovia, eu já sabia o que fazer. Mas esse sentimento de urgência, essa sensação horrível de que passou tempo demais e não ficou bem de verdade, isso tudo tem piorado muito minha situação. Antigamente eu não fazia ideia do que ia acontecer, e agora as coisas são muito bem planejadas. Planejadas até demais. As vezes é como se eu estivesse lendo um livro muito chato, contando as páginas pra acabar esse capítulo logo, mas sem ter muita certeza se vai ficar melhor no próximo.”

Pra falar a verdade, eu tenho saudade mesmo é de quando eu conseguia me dar bem fazendo o mínimo possível. Mas, poxa, não me leve a mal… Eu não fazia as coisas sem me esforçar, muito menos com pressa ou de mal jeito. Na verdade, acho que, quando eu era mais novo, eu até tinha mais interesse em completar as coisas do que agora. Eu acho que, com “fazendo o mínimo possível”, o que eu quero dizer mesmo é “dando o melhor de mim”. Na verdade, eu acho que o que eu quero dizer é… “com o pouco que eu conseguia”. Mas eu prefiro a primeira versão mesmo. Ela implica uma ideia de “fazer sem precisar provar nada pra ninguém”. É sobre isso que eu estou tentando falar: eu não quero ter que provar nada pra ninguém. É isso! Eu tenho saudade de poder fazer tudo do meu jeito! De uns anos pra cá parece que existe um método pra tudo que a gente faz… E eu gostava muito mesmo de quando a gente ainda não tinha feito ninguém criar expectativas, quando eu tinha a licença poética pra poder errar. Eu tenho saudade de quando não tinha nada de errado em colorir fora das linhas. Eu gostava quando era só a gente e as coisas que a gente fazia. Sem causa e consequência, sem subentendido, sem catástrofe nenhuma, só a gente, algum problema, e um jeito de resolver. Só a viagem cansativa e o jeito de voltar pra casa. Só um pesadelo estranho e nenhuma hora pra acordar.

jan 2019

E NÃO VAI SOBRAR MAIS NADA PRA AMAR:

Cobras trocam de pele umas quatro ou cinco vezes por ano. Elas sentem que é o momento de abandonar a antiga camada de escamas que habitavam, e simplesmente deslizam pra fora dela, como se aquele corpo não às pertencesse mais. E, pra ser bem sincero, não pertence mesmo.

Pessoas morrem todos os dias. Elas não trocam de pele, mas trocam o que quer que tenham dentro, chame isso de gosto, personalidade, ego… Eu chamo de fantasma. Essa é a unica diferença entre a gente e os lagartos.

Ninguém te ama quando você ta se sentindo mal, quando cortaram errado seu cabelo, quando você pede por ajuda.

Ninguém gosta de quem fala que ta cansado.

COM O BOLSO CHEIO DE… FANTASMAS?:

Eu juro que já estava com a ponta do meu pé esquerdo no ano novo, preparado pra executar minha criança interior, mas o meu corpo inteiro ainda se jogava pra trás, de forma totalmente inconsciente. Tão inconsciente, que eu só fui perceber quando me contaram. Ou seja, todo mundo conseguia ver, de um ponto de vista externo, menos eu. A verdade é que eu queria sair daqui o mais rápido possível, mas as circunstâncias… As circunstâncias! OK, aqui estou eu culpando as circunstâncias de novo. Eu prometi que ia parar de fazer isso, que eu ia jogar esse hábito fora na primeira lata de lixo que cruzasse meu caminho, e mil desculpas por ter sido em você. Mas tudo bem, vamos falar disso… Meu bolso está cheio de coisas, afinal.

Vou te contar algo que aconteceu comigo outro dia.

Eu acordei, como faço todo dia em algum momento, e fui direto pro espelho, checar se estava tudo bem.

Criei esse hábito porque em certo ponto em 2017, eu acordei em uma manhã qualquer. Fazia muito frio e eu demorei algum tempo pra me levantar (o céu é mais pesado de manhã). Acontece que, nesse dia, olhei de relance pro espelho e não me encontrei la. Vi qualquer coisa, menos eu mesmo. Descobri uma dessas coisas que ninguém conta pra gente enquanto cresce: A gente morre todo dia.

Encerrar qualquer coisa é como fazer um sacrifício. Deixar pra trás um dia, sem piedade, ou um ano, ou até mesmo uma década. Você deixa você mesmo no passado, e, pessoalmente, eu recomendo que nem olhe pra trás. Pra continuar vivo você tem que se matar várias vezes, e é mais fácil matar alguém que você não conhece do que um amigo intímo, então nem se apegue a quem você é. Foi isso que o Rei dos Lagartos me ensinou.

Ele teve que me ensinar, porque é da minha natureza fazer tudo isso errado. Eu cheguei no final de todos esses anos com um punhado de fantasmas dentro do bolso do meu casaco, como quem acabou de roubar um banco, fez uma chacina, e agora é assombrado por todas as vítimas. Pior ainda no meu caso, porque essas vítimas são todas eu mesmo, e, eu juro, eu sei meus pontos fracos melhor do que qualquer outra pessoa.

Sou muito bom em matar quem eu era, o difícil é jogar esses fantasmas fora. Eu recordo de tudo com muito carinho. Eles estão todos no bolso, mas não apenas lá. Estão também em fotos na minha carteira, dentro do meu armário, na minha antiga mochila de escola, nas paredes do meu quarto, em arquivos no meu computador, e nos quartos mais escuros do meu cérebro.

Decidi jogar todos fora, menos aquele que gostava de desenhar, que ouvia Beatles, e que gostava do Apanhador No Campo de Centeio. Aquele que entregava o coração pras pessoas simplesmente porque abriam a brecha pra ele poder fazer isso. Me disseram que crescer era sacrificar esse fantasma… Mas esse eu não troco por nada.

(PARTE III):

Ouça seus instintos. Acredite no que você temia quando era criança. Não mate sua criança interior, conte uma história e deixe ela dormir. Na maioria das vezes, quando ela chora, não é drama. É um jeito muito inocente de pedir ajuda, e isso diz muito sobre coisas que ainda te assombram.

Ouça seu próprio coração, sempre pergunte pra carne crua do seu cérebro o que ela tem a dizer, antes de cozinhar qualquer órgão vital no terrível calor do conformismo. Então, compare a cor do seu sangue numa tabela pantone, e desconfie do ar que você respira. Mas não se esqueça dos lugares onde você esteve. Conte quantos dentes você tem, e vomite o máximo de palavras que você conseguir. Procure no meio delas quais são de fato a verdade. Não consulte o dicionário.

Colora da cor que você quiser, e fora das linhas, se esse for seu jeito de fazer as coisas.

Se vocês quiserem brincar de cowboy, escolha ficar do lado dos índios. Não fuja de fantasmas, eles tem mais medo de você do que você tem deles.

Essa é pra vocês… À bruxa que morava atrás da porta do banheiro, aos seres invisíveis no céu, e às criaturas imaginárias. Ao fantasma que me seguia até a cozinha, de madrugada, e ao único que me seguiu até aqui:

Eu sinto saudade de quando meus medos ainda eram meus amigos.

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o universo observável troca de pele e vira ao avesso

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