Edgar Alien Poe

mac
4 min readFeb 8, 2020

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Eles dizem que os sinos da única igreja do inferno só tocam quando você é requisitado — leia-se vulgarmente “quando chega sua hora” — e que esse tipo de evento acontece uma única vez na sua vida. Antes disso, tudo pode acontecer, desde que você não venha a óbito. Mas curiosamente, nunca, em qualquer tipo de registro em cartório ou documento carimbado e escrito em papel oficial, foram cogitados dois óbitos do mesmo cidadão no mesmo dia, e tal fenômeno seria considerado minimamente paranormal por qualquer um que se preze entendido das anormalidades do mundo oculto. É definitivamente uma paranormalidade, no sentido mais objetivo que a expressão pode representar no dicionário. Parece então estranho. Principalmente para aquele que não está atento aos fenômenos paranormais ocasionais do dia-a-dia, e aos ofícios diários do diabo no mais escuro corredor da psiquê humana, exposto o fato de que não é um fenômeno normal, já que é consenso entre os profissionais dos fenômenos invisíveis aos olhos que, estes sim são um exemplo das paranormalidades grotescas que mais acontecem no submundo de nossas imaginações. Se fossem tão comuns assim não seriam paranormalidades, e nesse caso não haveria nem mesmo sentido em registra-las. Mas para a felicidade da ciência moderna e daqueles que à acompanham com entusiasmo, existe um registro escrito verídico do caso fenomenal de dois óbitos do mesmo indivíduo no mesmo dia, e por mais que esse acontecimento seja difícil de se credibilizar, é suficiente para convencer qualquer um que esteja suspeito de que tal fenômeno ocorreu nos fundos de sua própria mente, enquanto os olhos não estavam atentos.

O relato tem início em um início de madrugada qualquer, no centro da cidade. Os pedestres marchavam silenciosos pelas calçadas escuras de uma sexta-feira noturna comum de qualquer centro urbano, quando um homem de estatura normal, peso normal, rosto normal, e condutas absolutamente normais, avistou um acontecimento curioso há poucos metros de seu próprio nariz. Um milagre macabro sendo conjurado da escuridão, como um truque grotesco de magia negra bem diante de seus olhos nervosos. Ele avistou, de repente, outro homem idêntico a ele ser projetado de um cruzamento, como um fantasma, com passos largos e rápidos, de uma esquina escura em direção ao outro lado da rua. Por um único momento não conseguiu acreditar que via a si mesmo, com as mesmas roupas, mesmo peso normal, rosto normal, e conduta absolutamente normal, passar diante de si, como uma miragem chocante do fantasma de alguém que ele conhecia muito bem, mas no fundo das suas sinapses sabia que o ocorrido havia sido surreal. Ele conhecia o sujeito apenas de um ângulo, ocupado sempre que tinha a oportunidade de se olhar no espelho, mas nunca imaginaria a forma que o reflexo tomava quando era visto com olhares esguios, deviantes, e pouco atentos, de um ângulo torto da esquina escura que cruzava sua direção. Cruzou com um tipo de monstro conhecido, que rastejou das profundezas abissais da realidade que estava habituado de todos os dias, como se tal fenômeno fosse um acontecimento tragável pelo cérebro. Viu ele mesmo em carne e osso passar distraído diante de seus olhos, e sentiu-se sufocado por um milésimo de segundo. Talvez o sentimento tenha sido amplificado pela canção de que ressoava de seus fones de ouvido em direção ao seu cérebro. O fato é que qualquer tipo de reverberação de som o rangia de dentro para fora, como um eco ressoando em um ambiente fechado. O que faz sentido, tomando a análise de Platão, aquela de que vivemos dentro de uma caverna. “Talvez estejamos naturalizados com respostas vindas do além, como os ecos em uma caverna”, ele pensava, distraído, no instante da aparição. Mas sua reflexão durou apenas uma fração de segundo, logo sendo interrompida pelas mais estranhas perguntas já feitas. “O que eu estou fazendo aqui?”, ele começou. Sua duplicata não ouviu, e prosseguiu a marcha rápida olhando para os lados, como se estivesse sendo observada. A verdade é que estava sim sendo observada, só não sabia que era por si própria. E o homem também não acreditava estar se observando. “Deve ser alguém parecido”, ele se reconfortava. Afinal, nunca havia se visto daquele ângulo incomum, e começou a perceber-se como um indivíduo externo, totalmente estranho. Começou a reparar no tamanho do seu queixo, no formato de suas orelhas, no jeito que andava. Sabia que era ele mesmo, mas nunca imaginava que fosse assim de outro ponto de vista. O mais impressionante é que tudo naquele sujeito o irritava. Suas roupas. O jeito como olhava para os lados, como se estivesse sendo perseguido. O jeito como era tão parecido com ele mesmo, mas também totalmente independente. O jeito como era imprevisível, e parecia poder simplesmente começar a fazer algo depravado, como um lunático, e nada poderia ser feito para impedi-lo. Aquela criatura poderia simplesmente se jogar na frente de um carro a qualquer momento, e causar um acidente. Poderia se jogar contra uma vitrine de uma loja, ou dar um soco em alguém. E a culpa seria sua, afinal, era seu clone e era sua responsabilidade. E se o Duplo cometesse um crime, e desaparecesse nas sombras, deixando apenas o original para ser incriminado? Não haveria como provar quem era o real criminoso. Ou melhor, o criminoso era ele mesmo, não? Afinal, como poderia haver uma duplicata idêntica simplesmente vagando as ruas? Seria um castigo divino? Uma maldição?

Na verdade, era objetivamente isso. Nosso objeto de estudo era um maníaco. Nosso protagonista não era apenas obcecado, mas também viciado em fazer tudo que os profissionais da paranormalidade recomendavam que não fizesse. Acordava todos os dias com o pé esquerdo, passava por baixo de todas as escadas que encontrava, e tinha dois gatos pretos, os quais atendiam pelos nomes Agouro e Satanás. Não era um sujeito mal, mas andava na contra-mão, como forma de desafio. Talvez tivesse algo com figuras de autoridade? Bem, nunca saberemos, pois morreu duas vezes nesse dia. Nosso objeto de estudo estava tão frustrado com sua duplicata que não percebeu que ela atravessava a rua no sinal aberto.

Ambos foram atropelados.

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Written by mac

o universo observável troca de pele e vira ao avesso

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