theo (mac)
3 min readMay 3, 2024

um corpo se afogando na luneta

Quando o navio zarpou, me prometeram um punhado de sal e uma coroa trançada que coubesse na minha cabeça, ornada com pérolas e que combinassem com o sentimento de que fizemos a decisão certa. Agora que as velas estão cheias de vento, meu coração morre de saudade de casa, e não tem punhado de sal ou coroa alguma que compense o frio que estou sentindo na sola dos pés.

“estou por inteira no mar, pai, e não sei se vou ou venho. Não tem estilhaço, ou trama, entrelinhas, contragosto, golpeio ou sucata. Tudo pertence a mim.”

“Dançamos por milhas, mas você parece cansada. Durma um pouco, que a noite é fria e não se importa com você.”

Ouvimos risadas ecoando nos cantos das paredes, mas agora é só as cortinas se arrastando com o vento, que me apontam pra verdade que paira no ar.

Estar sozinha é difícil, mas mais difícil ainda é desejar a presença de alguém que não está mais aqui agora.

Um corpo se afogando na luneta.

Alguém sabe resolver um nó na garganta?

Dói muito a um fantasma a noção de que as bolhas e calos nos seus dedos se curaram com a morte, mas também que a nostalgia dos tempos remotos quando estivera vivo evaporaram em questão de segundos. Durou um relâmpago e meio.

durou um relâmpago e meio, mas acho que a impressão ficou pra sempre. Não estou mais aqui, agora.

Uma sala escura de cinema. Uma impressão de carbono. Ecos dos nossos passos, dançando, e silêncio total, logo em seguida. Curvas no túnel. A parte mais congelante, afiada e grotesca de estar viva. Chuva de madrugada. A solidão de ter posse de um corpo, e a melancolia de estar responsável por um punhado de matéria ricocheteando no ar. Mas como posso me desapegar? Sem isso as flores não cheiram tão bem. Não existem sábados de manhã. Não posso conjurar palavras.

Nosso passaporte está assinado desde o primeiro punhado de ar inalado, e sublinhado desde o primeiro coração partido. O meu tem rota definida. Eu já tenho nome e sobrenome, mas com um pouco de esforço, consigo me lembrar de quando não sabia o alfabeto inteiro ainda. Infinitas direções pro meu corpo crescer. As linhas pontilhadas se parecem com as rodas dos carros, e com as estrelas lá no céu. O som vulgar de um carimbo sendo pressionado se parece com um tiro no peito.

De olhos fechados eu vivi infinitos corpos. Aos olhos abertos dos outros, mais ainda, um pra cada instante, e um pra cada par que cruzei. Diante do espelho, habito apenas um. Diante das ondas do mar eu não habito nenhum deles. Assim fica fácil escolher onde eu gostaria de estar agora.

Existem infinitos olhos sendo impressos nesse salão. As colunas sustentam um teto que não protege nada. A imensa escadaria de mármore não leva pra lugar nenhum, e o céu entre os vãos é infinito, a grama é verde, e o dia está lindo. Mas existe uma tensão estranha no ar agora.

Estamos sentadas, tomando café em silêncio.

Ela encosta nos meus pulsos, e afirma que estou muito pálida. Eu dou um suspiro e tento tirar uma risada da manga. Falho miseravelmente. Se foi o tempo quando truques baratos funcionavam. Esse lugar não foi feito pra flocos de neve como eu e você, e é desejado uma mudança drástica no modo de operação.

É doloroso admitir que o sangue acabou. É hora de dormir. Voltamos ao começo. Cheguei em casa.

Uma dentição inteira jogada ao mar, 32 pedidos.

Uma onda eterna, que está pensando em dobrar na praia desde o período neolítico. Infinitos estilhaços. Mais ainda, grãos de areia. Um montão de conchas na superfície, alinhadas, em ordem de tamanho, que desenterrei pra cada corpo que deslizei pra fora. As gaivotas comendo os restos mortais, e o sangue secando no sol de manhã. O mundo inteiro escavado, e o universo despido de mistério. As charadas resolvidas, as alegorias decifradas, cofres violados, tesouro dividido e dinheiro gasto. Sobra o maior tesouro de todos: A lembrança do som de um canhão em disparo.

theo (mac)

o universo observável troca de pele e vira ao avesso