“O céu inteiro está girando todo dia, fazendo essa acrobacia torta, e voltando pro mesmo lugar na manhã seguinte!” — Eu disse pra mim mesmo com um único folego, em uma tarde cinzenta e nublada, enquanto pegava a garrafa de leite na geladeira. Eu não sei exatamente por que falei aquilo, mas as palavras foram vomitadas de dentro do meu estômago, projetadas pelo ar frio e ecoadas pelas paredes solitárias da cozinha do meu apartamento, onde continuaram pairando por vários segundos como se tivessem impregnado o lugar. De volta aos meus ouvidos, elas trouxeram à superfície da calmaria do meu cérebro um sentimento de inadequação desconfortável, como se eu estivesse em um habitat estranho onde eu era indesejado, na pele de outra pessoa, em um tênis que não era meu. Minha própria sentença me fez perceber um tipo de discordância com meu corpo, sentimento esse que volta frequentemente na minha vida, quando eu sinto que minha rotina está deixando de ser um desafio e começa a ficar dolorosamente confortável. E não foi a primeira vez que isso aconteceu, na verdade, sentenças semelhantes aparecem de tempos em tempos na minha garganta, reverberadas pelos meus dentes. É um alerta que me lembra de que as tarefas mais difíceis estão começando a ficar monótonas, e que as coisas mais fáceis, que antes poderiam ser realizadas de forma inconsciente, como pegar no sono ou conversar, estão ficando difíceis demais, deixando de pertencer a uma esfera natural e aos poucos se tornando um dever cansativo. Ah, e eu logo notei o quanto respirar já foi muito mais fácil também. Nesses finais de dias estranhos que o sol desaparece nas nuvens antes da hora marcada e deixam o ar mais pesado de ansiedade e tão cheio de micro-impurezas e venenos tóxicos que vieram sei lá de onde, eu sempre fico com a quase certeza de que tem algo errado acontecendo. Eu me recordo que houveram momentos de duração limitada quando eu podia simplesmente puxar um pouco de oxigênio e contar até 10, e tudo voltava ao normal, sem drama, sem dar meia-volta. Sem que meu espírito entrasse em combustão espontânea e eu começasse a me questionar se minha cabeça ainda estava no lugar certo. Tinha até um certo prazer em saber que ainda dava tempo de ficar tudo bem, por pior que estivesse, e lidar com o frio era até bem confortável… Só fechar as janelas, deitar um pouco. Não tinha erro. Quando era pra chover, chovia. E quando chovia, eu já sabia o que fazer. Mas esse sentimento de urgência, essa sensação horrível de que passou tempo demais e não ficou bem de verdade, isso tudo estava piorando muito minha situação. Antes eu não fazia ideia do que ia acontecer, e agora as coisas eram muito bem planejadas. Planejadas até demais. Agora era como se eu estivesse lendo um livro muito chato, contando as páginas pra acabar esse capítulo logo, mas sem ter muita certeza se vai ficar melhor no próximo. Eu me senti velho, como se aquele indivíduo que eu escolhera ser já tivesse passado da hora, já tivesse entrado em um processo de saturação que ocasionaria na morte inevitável do meu ego e da minha persona. Naquele breve instante eu comecei a cansar do meu personagem, e percebi que seria necessário abandonar o navio antes que ele afundasse. Era hora de planejar minha fuga, escapar para outra concha onde eu poderia desenvolver uma nova identidade. Logo, eu comecei a pensar em serpentes, e invejar o fato de que elas mudam de pele de uma a cinco vezes por ano.
Antes mesmo que o eco da minha afirmação sequer pudesse ser processada no meu cérebro, eu ouvi uma voz fria, metálica, e áspera vindo do microondas. Ela falava cheia de sabedoria, de uma forma tão assustadora que eu nem poderia discordar, afinal, diante daquele ruído fantasmagórico eu me sentia apenas um mero mortal — ”Se você está se sentindo assim, está vivendo errado.” — ela disse apenas essa sentença, colocando peso suficiente em cada sílaba para torturar minha paz como um som de alarme. Aquilo me fez refletir. Não parecia haver nada de errado no que eu disse, na verdade eu tinha certeza absoluta de que minha vida estava tediosa como o inferno. Aquela voz inumana, amargurada, cheia de veneno, não sabia do que estava falando, e eu teria ficado extremamente desconfortável com a presença dela no cômodo mais íntimo da minha moradia (a cozinha), se não fosse o recém-nascido sentimento de inadequação inquietante e ansiosa que havia tomado meu cérebro nos últimos instantes, que me fizera sentir como se aquele lugar pertencesse mais a quem quer que tivesse dito aquilo do que a mim. Aquela voz macabra, o ar de superioridade, o contestamento de uma afirmação simples e pessoal, somado ao ecoar misterioso daquela voz, me fizeram fechar meus punhos instigado por um sentimento mútuo de raiva e curiosidade. Me questionei se deveria ou não abrir o microondas, já que, por um lado, eu desejei seriamente amassar quem quer que tenha dito aquilo com minhas próprias mãos. Por outro lado, eu aprendi bem cedo na minha vida a não me incomodar com quem faz comentários inconvenientes. A coisa certa a se fazer era simplesmente respirar fundo, resgatar paciência de onde eu pudesse, e fingir que nada aconteceu. Mas a voz vinha do meu microondas. Alguém havia se apoderado dele. Tinha algo la dentro. Eu podia ver sua silhueta pela porta fosca da máquina, e ela parecia ameaçadora, totalmente imóvel, e preparada para atacar com outra frase infestada de frieza e calculismo desmedido. Sem pensar duas vezes, eu apertei o botão que abre a porta do eletrodoméstico, e a luz amarelada dentro dele revelou um animal imenso, com garras afiadas e escamas ásperas, com um aspecto dracônico e maléfico. Claramente com segundas intenções. Ele sorria com o canto da boca, mostrando presas imensas, pontiagudas e ferozes, de onde saia uma língua podre e bifurcada, provavelmente venenosa e afiada, com mais uma frase paralisante engatilhada para qualquer resposta que eu tivesse. Era o próprio Rei dos Lagartos debruçado no meu microondas, desfrutando do calor da maquina enquanto fumava um cigarro.
Mas tão rápido quanto eu tomei conclusões precipitadas sobre minha desafinidade pelo Rei dos Lagartos baseada em sua voz e sua afirmativa prepotente, eu também logo mudei de ideia quando vi a criatura. Ela estava deitada sobre o prato do microondas, de um jeito relaxado e confortável, como se tivesse total controle da situação. Olhei nos cantos do eletrodoméstico e pude perceber que o réptil havia tornado aquela máquina sua casa, já que havia um pequeno sofá, quadros, um belo tapete, uma televisão e uma mesinha de centro espalhados por dentro do microondas, que agora era pequeno e aconchegante lar. Mas minha simpatia veio quando eu percebi que compartilhávamos gostos, já que um pequeno aparelho de som tocava Bowie. Consegui facilmente me colocar no lugar dele, como um igual, como se pertencêssemos a um mesmo tipo. Com seus olhos fendados amarelos, ele provavelmente percebeu minha mudança de perspectiva, pois logo sorriu e me ofereceu uma xícara de chá. Eu me sentei junto ao imenso réptil e fiquei em silêncio enquanto ele iniciava sua tese, ouvindo atento toda sua lição e toda a sabedoria em seu discurso, absorvendo todo o conhecimento que ele podia me oferecer, aberto para suas ideias e disposto para debater.
— Você é tolo por achar que tem uma casa. — Ele começou, com um certo ar de pena, depois de puxar um fôlego profundo que provavelmente indicava o tanto que ia falar. — Eu tenho andado por milênios por todo tipo de mata fechada, deserto, tundra ártica, posto de gasolina, por toda duna vermelha em Marte, pelas crateras da Lua, pelo fundo do mar, por trincheiras de guerra.
Minha primeira dúvida sobre a veracidade da história que ele contava foi sobre sua verdadeira idade. Perceba, ele disse “milênios”, repito, MILÊNIOS. Apesar de sua aparência anciã, ele não falava como meu avô. Era um igual. Meu palpite é que ele estava por volta dos seus vinte e tantos anos, mentindo descaradamente sobre suas experiências de vida pra me convencer de alguma coisa como se fosse mais inteligente ou algo do tipo. Provavelmente eu fiz algum tipo de olhar de incrédulo, provavelmente girei ou arregalei meus olhos, em deboche ou surpresa, pois ele logo completou:
— Eu não envelheço porque não me permito. Bob Dylan diz que “aquele que não se ocupa em nascer está ocupado morrendo”.
“Filho da puta” — eu pensei. — “Ele é bom nisso. Está usando meus gostos pra me convencer de alguma coisa.” — E nesse ponto, provavelmente qualquer coisa que ele falasse eu concordaria.
— E eu estou há alguns dias extremamente confortável dentro do seu microondas. — Ele continuou com um sorriso de conquista no canto dos lábios. — Eu estava vivendo no parapeito da sua janela, mas nessa época do ano a chuva vem sem avisar, as nuvens tampam o sol, trazem o vento e tiram a única coisa que me permitem viver como saúde, naturalmente, como sou um animal de sangue frio. Infelizmente eu não produzo calor. Preciso do meio externo pra isso, e encontrei o lugar perfeito aqui na sua cozinha.
— Então você fugiu da chuva e foi pra dentro do meu microondas pra sobreviver? — Eu disse, tentando soar o mais neutro possível, mas sem querer demonstrando minha admiração enrustida pela criatura.
— E é exatamente ai que divergimos, meu caro. Eu não vim em busca do seu microondas, eu só corri pra dentro do apartamento, e acabei me deparando com essa bela cozinha. — Disse ele, calmamente. — Em um habitat estranho, eu tive que encontrar o melhor meio para sobreviver. E é nesse ponto que acredito que você esteja errando, você não deve encontrar um lugar confortável. O segredo pra vida de árvores sem raízes, aventureiros, e viajantes de mente aberta como eu e você, é encontrar o conforto onde quer que você esteja.
Nesse ponto eu confesso que me emocionei, e quase comecei a chorar. Engoli o nó na garganta e respondi:
— Certa vez um sábio me disse que sempre que você se encontrar em uma situação sem saída, se achar que seu personagem está vivo há tempo demais, basta se atirar no chão o mais rápido possível, fingir de morto por alguns minutos, e se levantar como outra pessoa.
— Alguns falam de cobras que comem o próprio rabo, alguns falam de promessas de ano novo. — ele disse. — É sempre um discurso sobre recomeço. A questão, meu amigo, é que alguns seres, “árvores sem raízes” como eu mencionei, vivem isso com tanta frequência, de uma forma tão intensa e óbvia, que aprendem a tornar isso um espetáculo prazeroso. Sabem aproveitar o fato de que o mundo acaba todos os dias, para recomeçar como uma nova pessoa no dia seguinte. Abrace o eterno retorno, aproveite o recomeço, viva a mudança. — Nesse ponto nós dois brindamos, pois percebemos que eramos mais parecidos do que pensávamos. — Se você não está se sentindo como se estivesse no seu próprio ambiente, na sua terra natal, adapte-se, adapte-o. Torne-o seu. Seja criativo, evolua. Quando for a hora, vá para a próxima fase e repita tudo de novo.
Eu concordei plenamente com meu novo amigo, e dando fim à discussão, eu perguntei sobre suas músicas favoritas do Bowie e do Dylan, sobre seus filmes preferidos, e continuamos nesse assunto por horas. Eu voltei mais algumas vezes em sua casa temporária durante a semana, e jogamos video-game juntos algumas vezes. Mas, no domingo de manhã, o céu acordou mais ensolarado do que eu jamais tinha visto. Ele já não estava mais no microondas, e não deixara nenhuma carta nem aviso de saída. Eu simplesmente sorri, esperei que passasse bem onde quer que estivesse, e torci para encontrá-lo novamente em algum dia no futuro.