MORTO AOS 19?

mac
4 min readJun 21, 2020

--

Assim como na música do David Bowie, faltavam 5 anos pro mundo acabar. Um professor se aproximou com uma bandeja prateada. Ele estendeu ela pra mim, e disse. “Aqui estão seus nervos. Aqui estão seus neurônios, e as sinapses entre eles. Aqui estão seus receptores de dopamina, seus receptores de serotonina, seus receptores de melatonina. Aqui está a oxidação da sua adrenalina. Aqui está a citologia e a bioquímica que acontece na sua cabeça em uma escala tão pequena, em uma matemática tão complexa que você vai decorar, mas nunca vai compreender. Aqui estão as curvas e a acrobacia estúpida que o sangue faz nas suas veias. Aqui estão as regras, as normas, e o moedor de carne por onde a gente vai te colocar. Aqui estão as superestruturas que você não tem opção senão participar. Esses são os muros entre as outras pessoas e todas as coisas que você quer contar pra elas. Esses são os ângulos das paredes do seu quarto, e o formato estranho dos objetos. E aqui está o medo dos objetos em movimento, a fala ansiosa, a expectativa. Esse é o gosto azedo ou amargo disso tudo, e aqui está todo o medo que vai acumular nas suas costas enquanto você ainda souber respirar”. Eu aceitei um pedaço. Perguntei se não tinha alguma coisa um pouco mais doce. Ele olhou pra mim com pena, como se eu fosse uma árvore prestes a ser cortada, dizendo com os olhos… “poxa vida, é mais um daqueles”. Ele colocou a mão no meu ombro (eu coloquei as mãos nos bolsos), ele se aproximou até meu ouvido (eu olhei pra baixo), ele cresceu em cima de mim, me algemou, me deu um boletim vermelho e disse… “provavelmente tem o som do seu coração batendo, mas não importa o que acontecer… pelo amor de deus não conta pra NINGUÉM que você sabe disso.”

Eles me reprovaram na escola.

Eu senti que aquilo era uma ameaça, e quem sou eu pra falar tão alto? eu deixei aquele sentimento escondido bem fundo, afinal eu ainda não sabia escrever, e também não sabia tocar guitarra. Eu sabia desenhar, mas nem fodendo que ia mostrar pra alguém as coisas que eu pensava. Eu tinha medo de pessoas mais altas do que eu. Eu tinha medo dos adultos, seus sapatos gigantes que eles amarravam sozinhos, e seus nós de gravata. Eu tinha medo do fato de que eu não achava graça de nenhuma piada que eles contavam lá na frente do quadro. Uma vez eu ri de nervoso.

Eu conheço um sentimento que ainda não inventaram nenhuma palavra pra explicar. Pode procurar no dicionário… Você não vai encontrar nenhuma palavra que expressa a angústia do final da infância de pegar seus brinquedos um dia e sentir eles desconfortáveis na suas mãos, sem saber o que fazer com eles. De olhar pra aqueles rostinhos de plástico e não enxergar mais nenhuma vida, não conseguir imaginar nada naquilo tudo. É a dor de perder seus amigos imaginários, é a solidão de ser atirado na gaiola, de quando colocam grades na sua janela. A mentira que eles te contam de que vão cortar suas asas pelo seu próprio bem, e de que você vai ter liberdade quando te chutarem pra fora do ninho. De que crescer é colocar uma gravata, se enforcar em responsabilidades e desenvolver um monte de habilidades que você nunca descobriu pra que servem de verdade. É o megafone apontado pra sua cabeça gritando que você tem que crescer (mas crescer pra onde?). É o medo de chorar em público. É a lágrima que escorre da segunda feira e cai na sexta, e escorre de volta quando o dinheiro cai na conta. É o susto de ser acordado pelo alarme do despertador todo dia.

Eu conheço varias palavras, mas já tem um tempo que a maior parte delas perdeu metade do significado. Eu seguro forte as poucas que sobraram nas minhas mãos, e não sei mais o que fazer com elas. Nessa manhã eu mordi um pedaço de ar puro, e foi mais gelado do que eu esperava. Eu olhei em volta, e todas as superfícies pareciam com a neve que gruda na parede interna do congelador, e não tinha nada de bonito nisso. Era como mandar uma mensagem pro abismo, e a foto dele sumir logo depois. Outro dia eu cheguei na beirada da janela, e tem morte acontecendo debaixo do nosso nariz. Vocês sentiram cheiro de sangue? Acho que eu não consigo tirar nada disso, me deixa enjoado. Nem sei mais o que dizer.

Quem foi que domesticou a borboleta no meu estômago? Ela parou de fazer barulho. Ela parou de se deitar na cama de tarde, parou de falar dos nossos filmes favoritos, parou de pensar em garotas, nunca mais fez um som. É impressão minha ou hoje é meu aniversário?

--

--

mac
mac

Written by mac

o universo observável troca de pele e vira ao avesso

No responses yet