Não é sangue, mãe (é so ketchup)

mac
6 min readJan 15, 2020

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Eu não tenho o costume de falar sobre isso, mas o Diabo vive dentro do bolso do meu casaco. Ele tem dois chifres, como nos filmes, e se alimenta de sangue fresco e carne crua. Ele é vermelho, tem uma cauda de escorpião, e sabe de tudo que eu sei. E essa é a pior parte… Ele se alimenta de sangue fresco e carne crua.

Quando eu era pequeno, um fantasma me seguiu até a cozinha. Ele fazia mais barulho que eu, andava nas sombras como eu, e falava como eu. Ele era amigo das Criaturas Imaginárias de Luis Borges, que eu reconhecia toda vez que olhava através do espelho, e também da bruxa que morava atrás da porta do banheiro. Ele nasceu no Halloween. Eu moro em uma casa mal assombrada, e vivo aqui desde que nasci. As portas rangem, corre tinta pelos canos enferrujados, o chão range, e até as paredes rangem.

Eu tenho dois pés, e tento usar eles pra me levantar todo dia de manhã. Na maioria das vezes eu consigo, mas as vezes não.

E eu tenho duas estrelas nos olhos. Ninguém nunca me contou se são estrelas de verdade ou estrelas do mar, mas eu suspeito que, por um bom tempo, elas pertenciam a algum lugar la em cima. Talvez cairam, eu realmente não sei, mas o que eu quero dizer é que elas estão definitivamente no lugar errado. O inferno é entre a lua e o alto mar, a gente pisa nele todo dia, e deita no colchão toda noite, longe dele, pra dormir. Eu nunca consegui encontrar essas estrelas, em nunhum lugar, em nenhuma das vezes que me olhei no espelho de manhã. Normalmente o que eu encontro são dois pedaços avulsos de farol, piscando em código morse, pedindo por ajuda — SOS… SOS… — pra qualquer um navegante estranho passando por aí. E pra isso eu também uso minhas antenas. Elas funcionam em AM e FM, e tem um alcance absurdo. Eu respiro fundo, lanço os sinais e aparece alguém. É isso que ainda me mantém respirando embaixo d’água.

Aquele que não se ocupa em nascer, está ocupado morrendo.

Quando eu tinha uns oito anos, minha mãe virou e falou: “CUIDADO! Porque a terra é azul, mas gira em volta de uma bola gigante de fogo. E tem gente la fora querendo o seu pior”. Ela me disse pra seguir uma métrica. Ela me disse pra respeitar as regras, ou pelo menos o máximo delas que eu conseguisse. Botou uma rede na minha janela, me deu um videogame e me matriculou na escola. Ela me ensinou a desenhar, mas nunca me pediu pra colorir dentro das linhas pretas. Ela nunca me falou um monte de coisa, mas eu descobri que a gente cresce, e eu descobri que a gente morre depois. Eu aprendi que o tempo passa, e não da pra voltar atrás. Eu aprendi que o ar é mais pesado de manhã, e mais frio la fora. Eu aprendi a usar o cinto de segurança, e eu descobri que se você correr segurando uma tesoura com a ponta dela pro lado de cima, você pode cair, e ela vai perfurar sua cabeça. Eu aprendi a tomar cuidado com os objetos cortantes, mas ela nunca me disse nada sobre meninas. E eu descobri de onde vem os bebês. Eu aprendi muita coisa, mas gostava mesmo de colorir fora das linhas.

Um dia eu cheguei em casa e falei: “Mãe, acho que eu estou gostando de alguém… ela tem a minha idade e a gente ouve as mesmas músicas, e ela gosta dos mesmos filmes que eu.”

A menina que eu gostava trocava de pele como os lagartos fazem, como o David Bowie fazia, e como Dylan faz também. Eu tento, mas não da pra competir. Eu senti como se meu coração tivesse sido enganchado por um anzol. Sangrou bastante na época mas agora eu estou bem.

Eu também conheci uma menina que brilhava igual o sol. Acabei me queimando.

Eu também conheci um monte de gente que foi legal comigo, mas é dificil falar embaixo d’água. As bolhas prendem o som, tentam chegar la, mas explodem antes. E equipamentos de som dificilmente funcionam submersos.

Eu deixo pedaços de mim mesmo em todo lugar que eu vou. Minha esperança é que as circunstâncias climáticas sejam apropriadas, e cresca alguma árvore no lugar.

Quando eu era pequeno um fantasma me seguiu até a cozinha. Ele falava demais de uma palavra de quatro letras* (que eu juro que não é “ódio”, nem “sexo”, e nem “sopa”), e me convenceu em poucos dias que era um cara legal. Meu erro foi deixar ele ficar lá tempo demais. Coloquei ele no meu bolso, e ele se sentou ao lado do Diabo. Eles ficaram amigos.

Cobras trocam de pele umas quatro ou cinco vezes por ano. Elas sentem que é o momento de abandonar a antiga camada de escamas que habitavam, e simplesmente deslizam pra fora dela, como se aquele corpo não às pertencesse mais. E, pra ser bem sincero, não pertence mesmo.

Pessoas morrem todos os dias. Elas não trocam de pele, mas trocam o que quer que tenham dentro, chame isso de gosto, personalidade, ego… Eu chamo de fantasma, e eu coleciono um punhado deles no bolso do meu casaco. Joguei muitos deles fora ao longo do caminho, mas tenho o coração mole demais pra me despedir da maioria.

Eu juro que já estava com a ponta do meu pé esquerdo no ano novo, preparado pra executar minha criança interior, mas o meu corpo inteiro ainda se jogava pra trás, de forma totalmente inconsciente. Tão inconsciente, que eu só fui perceber quando me contaram. Ou seja, todo mundo conseguia ver, de um ponto de vista externo, menos eu. A verdade é que eu queria sair daqui o mais rápido possível, mas as circunstâncias… As circunstâncias! OK, aqui estou eu culpando as circunstâncias de novo. Eu prometi que ia parar de fazer isso, que eu ia jogar esse hábito fora na primeira lata de lixo que cruzasse meu caminho, e mil desculpas por ter sido em você. Mas tudo bem, vamos falar disso… Meu bolso está cheio de coisas, afinal.

Vou te contar algo que aconteceu comigo outro dia:

Eu acordei, como faço todo dia em algum momento, e fui direto pro espelho, checar se estava tudo bem.

Criei esse hábito porque em certo ponto em 2017, eu acordei em uma manhã qualquer. Fazia muito frio e eu demorei algum tempo pra me levantar (o céu é mais pesado de manhã). Acontece que, nesse dia, olhei de relance pro espelho e não me encontrei la. Vi qualquer coisa, menos eu mesmo. Descobri uma dessas coisas que ninguém conta pra gente enquanto cresce: A gente morre todo dia.

Encerrar qualquer coisa é como fazer um sacrifício. Deixar pra trás um dia, sem piedade, ou um ano, ou até mesmo uma década. Você deixa você mesmo no passado, e, pessoalmente, eu recomendo que nem olhe pra trás. Pra continuar vivo você tem que se matar várias vezes, e é mais fácil matar alguém que você não conhece do que um amigo intímo, então nem se apegue a quem você é. Foi isso que o Rei dos Lagartos me ensinou, e ele teve que me ensinar, porque é da minha natureza fazer tudo isso errado. Eu cheguei no final de todos esses anos com um punhado de fantasmas dentro do bolso do meu casaco, como quem acabou de roubar um banco, fez uma chacina, e agora é assombrado por todas as vítimas. Pior ainda, no meu caso, porque essas vítimas são todas eu mesmo, e, eu juro, eu sei meus pontos fracos melhor do que qualquer outra pessoa.

Sou muito bom em matar quem eu era, o difícil é jogar esses fantasmas fora. Eu recordo de tudo com muito carinho. Eles estão todos no bolso, mas não apenas lá. Estão também em fotos na minha carteira, dentro do meu armário, na minha antiga mochila de escola, nas paredes do meu quarto, em arquivos no meu computador, e nos quartos mais escuros do meu cérebro.

Decidi jogar todos fora, menos aquele que gostava de desenhar, que ouvia Beatles, e que gostava do Apanhador No Campo de Centeio. Aquele que me seguiu até a cozinha, aquele que entregava o coração pras pessoas simplesmente porque abriam a brecha pra ele poder fazer isso. Me disseram que crescer era sacrificar esse fantasma… Mas esse eu não troco por nada.

Ninguém te ama quando você ta se sentindo mal. Ninguém te ama quando cortaram errado seu cabelo, e ninguém te ama quando você pede por ajuda.

Ninguém gosta de quem fala que ta cansado.

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Written by mac

o universo observável troca de pele e vira ao avesso

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