Para os corações na câmara de criogenização…
Não fiquem aí por muito tempo. As pessoas vão esquecer que você deixou algo congelando. Em pouco tempo apodrece, para de bater, perde a cor. O vermelho fica azul, o que era sangue vira gelo, seus olhos perdem o brilho, e ficam igual de peixe morto. Você vai tentar gritar, e ninguém vai entender. Você vai ouvir todo mundo se divertindo do lado de fora, e vai desejar energia suficiente pra conseguir fugir. Você vai começar a fantasiar com a idéia de explodir. Você vai sonhar que não existe, e todo mundo vai parecer distante. Suas lembranças boas vão ficar saturadas, e as músicas tristes vão ficar tão banais que vão perder o sentido. E é aí que fica perigoso. Você começa a desejar nunca ter nascido, e começa a viajar no tempo sempre que fecha o olho.
Inclusive, outro dia eu sonhei que tinha acordado. Eu sonhei que tinha acabado de me levantar, com meus dois pés, com minha cabeça logo acima do pescoço, com meus dois olhos brilhando, e sem nenhum peso nos ombros. Os dois lados do meu cérebro estavam conectados e funcionando em potência total. Eu ainda era um escorpiano, ainda tinha nascido no Halloween da virada do milênio, e ainda escrevia com a mão esquerda, mas meu coração estava no lugar certo dessa vez. Respirar me fazia bem, eu conseguia correr, gritar, e, se eu imaginasse um pouco, voava pra onde eu quisesse. Eu sonhei que era alguma manhã em 2010, quando o mundo não parecia ser muito maior do que eu imagina que ele fosse. Estava nublado, e chovia um pouco, mas eu sabia o que fazer, porque as nuvens não eram muito diferentes da minha cama. O sol sorria e usava óculos, como na televisão, e a chuva não era muito diferente de mim. Ela fazia barulho e chamava atenção, mas no fim das contas era só água, também. Eu sonhei que minha mãe ia me levar pra aula, e que eu tinha algo novo pra aprender. E meus amigos estariam lá comigo. Eu ainda não tinha nenhuma cicatriz, e não me importava de me sujar de terra, nem de ralar o joelho. Meus medos eram inofensivos, e eu tinha um dia inteiro pela frente. Deus gritava fazendo som de motocicleta, meu sangue era vermelho e meus olhos estavam sempre abertos. Eu poderia fazer tudo certo dessa vez.
Eu também sonhei que ainda dava tempo de escolher ser o que eu quisesse. Meus brinquedos ficavam dentro de um baú azul, eu tinha os desenhos na televisão, um videogame, a parede verde do meu quarto, e cores infinitas na minha cabeça. Os unicos olhos pousados em mim eram dos meus pais, e meus dentes ainda caiam, mas cresciam outros no lugar. O mundo era grande, mas a lua não era muito maior que a parte escura do meu olho. As vezes ela escorria do céu, caia na minha mão, e eu protegia ela de tudo. Eu desejava boa noite pra todo mundo, e todo mundo desejava de volta.
Eu costumava dar meu coração pras pessoas, simplesmente porque me davam oportunidade de fazer isso. E isso é verdade. Eu costumava ter uma curiosidade sobre as pessoas, eu via alguma magia no que quer que elas tivessem atrás da pele, e, como qualquer criança, meu jeito de alcançar isso era mostrando o que eu tinha por dentro também. Eu enfiava minha mão na garganta, e buscava lá dentro. Meus dedos sempre encontravam algo, e eu vomitava um monte de coisas, pássaros, e grama verde. Meu coração tocava música, e todo mundo dançava.
Mas eu acordei. Acordei de verdade, debaixo de uma sombra imensa, debaixo de um barulho terrível de motor e de um cheiro de fumaça. Eu acordei com uma faca no pescoço, com um corvo no coração, com o diabo no bolso, grades na janela e uma vontade monstruosa de desistir.
Eu lembro da primeira vez que eu desejei boa noite pra lua, e ela não respondeu. Minhas mãos começaram a tremer, e todas as cores dos meus olhos abandonaram o navio. Elas se jogaram nas lágrimas e fugiram pra bem longe.
Outro dia eu tentei buscar meu coração, mas não encontrei. Meus bolsos estão pesados, e eu perdi meu melhor amigo lá dentro. Pra onde foi todo mundo?
Eu não sei em que ponto as coisas começaram a ficar assim. É impressão minha ou o sol diminuiu ano passado?
COMO ROSTOS FELIZES ATRÁS DA CORTINA DO TEATRO… EXISTE CARNE ATRÁS DA PELE:
Eu disse um monte de coisas, mas o que eu queria falar é que… geladeiras no geral não são o melhor lugar pra deixar o coração. Da primeira vez que quebraram ele no meio, meu primeiro reflexo, que, eu juro, veio puramente por instinto e impulso, foi tentar juntar as duas partes. Péssima idéia, se quer mesmo saber. Elas decidiram que não iam conversar mais uma com a outra, não iriam nem mais dar boa noite uma pra outra. Não iam nem mais dormir na mesma cama. Uma dormiu no quarto de parede verde, ficou por lá, chateada com a outra, que decidiu que ia dormir ao lado da parede azul. Pior aida foi minha posição estúpida de tomar partido entre as duas; sem pensar duas vezes eu afoguei minha cabeça em um balde de tinta azul, dei um soco na janela e quase me atirei dela.
Não posso falar por nenhum de vocês, mas posso contar da minha experiência própria. Por um bom tempo, meu plano foi deixar meu coração partido dentro do freezer, como fez o Walt Disney quando morreu, na esperança de poder voltar com tudo quando a ciência descobrisse como fazer isso.
Mas não estamos no futuro ainda.
O futuro é tipo o Natal. A gente passa um tempão criando expectativa, alimentando ela como se fosse um porco, mas quando chega a data esperada, nem é tão legal assim. Porra, parando pra pensar agora, o futuro é igualzinho o Natal mesmo! Primeiro você passa o tempo inteiro na frente da televisão, comendo porcaria enquanto um monte de propaganda frita seu cérebro. Depois, mais tarde, você se descobre no meio de todos seus parentes, enquanto eles tentam te convecer de votar em um bossal. Mas essa nem é a pior parte. Tem sempre um cara muito estranho a solta por ai… Ele te observa ao longo do ano inteiro, com suas habilidades mágicas de onisciência, e, no final, julga secretamente se você foi um bom menino ou não. E eu nem estou falando de Jesus, não estou nem falando de alguém. Ele é uma máquina. Os dois “O”s de “Google” são dois olhinhos te observando.
Todo mundo tem a tal da Internet nas mãos mas, porra, ele nem responde o que signinfica “amor próprio”. Você pesquisa, e ele responde: “Sua pesquisa não encontrou nenhum resultado correspondente”. Eu odeio robôs, e odeio mais ainda quem age como se fosse um deles.
O mais perto disso que eu encontrei dessa busca foi sentindo o calor do sol, pisando na grama, e bebendo água. Conversando com algumas pessoas também, mas se estamos falando de Amor Próprio, é meio óbvio que a resposta fica em algum lugar lá dentro.
O que eu descobri foi que eu pertenço a uma certa espécie. Eu coloquei meu coração na geladeira esperando poder tirar ele de lá depois de um tempo, totalmente pronto pra voltar a correr. A verdade é que meu lugar não é entre os blocos de gelo, nem atrás dos imãs, nem debaixo dos pinguins de cerâmica.
Meu coração fica no microondas. Calor rápido, descoberto na Guerra Fria junto com a bomba atômica. Meu coração fica com o Rei Dos Lagartos, tentando sobreviver ao inverno, na frente da televisão, ouvindo as faixas do Dylan por onde corre mais sangue. Meu coração fica no Blonde On Blonde e no Blood On The Tracks, fica nas canções de amor, fica debaixo das obras expressionistas, fica no Pop, no Barulho, nos sorrisos idiotas, nas máscaras mais engraçadas, no rolo de filme. Meu coração bate como qualquer outro, mas em um compasso óbvio de 4/4. Ele aproveita disso pra tocar uma música pra quem quiser ouvir.
Espero que ele aceite minhas desculpas. Não estou aqui pra brigar com ninguém.
Eu esperei muito tempo pra ouvir alguém dizendo isso pra mim, mas como ninguém quis, eu faço com todo prazer:
Viva um dia de cada vez.
Vai ficar tudo bem.