Março começa com o pé afundado no acelerador. Eu sinto cheiro de gasolina, cheiro de borracha queimada, cheiro de carbono misturado no oxigênio. Eu descubro que é isso o veneno que eu tenho falado ha tanto tempo… é cheiro de movimento, é cheiro das minhas próprias narinas, é o cheiro das minhas duas mãos no volante, é cheiro das bandeirinhas, dos carros esquentando, da contagem regressiva, é cheiro do tempo passando. Ha algumas voltas atrás, quando a gente passava pelo mesmo lugar dessa mesma órbita, eu tinha meu pé afundado em uma poça de sangue, sem saber de onde tinha vindo a ferida. A verdade é que, agora que eu me sinto curado, eu sei onde eu me machuquei, e agora eu estou pisando no mesmo lugar de quando me feri. Eu sinto o perigo em volta, mas dessa vez eu sei onde vou pisar. Já estive aqui antes.
Quando eu era mais novo, eu tinha 7 cores que eu gostava muito, e nunca precisei de nenhuma outra. Meu sangue era vermelho, meu coração batia, e eu pensava com meu lado esquerdo. Em algum ponto eu enfiei minhas duas mãos enterradas dentro dos bolsos, e mastiguei um chiclete com tanta raiva que minha mandíbula começou a doer. Eu coloquei meu coração na câmara de criogenização. Eu fiquei em pé, colado na parede, com as costas apoiadas atrás e os pés cruzados na frente. Eu protegi meu rosto do sol usando um boné, enquanto meus olhos encaravam a alma de todo mundo que passava na rua, e enquanto me protegia dos olhares dos outros com um casaco preto. Então, meus olhos eram dois holofotes apontados pra tudo, analizando o ar com uma lupa de detetive. Pelo meu próprio bem, eu respirei por muito tempo como um submarino afundado no mundo real, escutando música em um lado do estetoscópio, e o outro pousado no chão da calçada. Eu vi tudo com uma restrita analise científica, e anotei minhas observações em um caderninho preto, do lado dos meus poemas. Eu criei um muro daqueles bem grandes em volta de mim, com arame farpado em cima, torres de vigia, feitos de cimento frio, e do lado de dentro, cachorros latiam pra todo mundo que tentava chegar perto. La de dentro, eu dizia um monte de palavras, e tentava explica-las fazendo todo tipo de malabarismo, quando na verdade eu tinha mesmo era medo de dizer “amor”. Eu inventei uma risada irônica pra qualquer comentário que me deixasse triste, e não tinha nenhuma risada de verdade no estoque.
Mas aqui estou eu novamente, dessa vez com o bolso cheio de fantasmas, na frente de um quadro negro, segurando um montão de giz. Eu descobri que todos eles que habitam meu casaco são meus amigos, descobri que meu coração bate do lado esquerdo, descobri que meu aniversário é no Halloween, descobri que meu nome tem quatro letras. Eu me lembrei de quem eu sou, me lembrei do meu endereço, e encontrei minhas chaves. Meu coração bate tão alto como o grito de uma granada em chamas. O sol é uma motocicleta, e o céu brilha como as estrelas no asfalto.
Mas eu sei que posso cometer erros de novo. Eu sei que cada passo em falso é uma nova chance de cair, eu sei que cada vez que eu ralar o joelho vai ser uma dor diferente. Eu sei que não me resta muito sangue, mas é o suficiente pra cobrir um deserto inteiro. Eu ainda não vi a luz no fim do túnel, mas isso só me faz pensar que eu não estou chegando no final. Ufa. Pelo menos isso. Eu passei tempo demais parado na mesma quilometragem, esperando uma carona, enquanto me esquecia que tinha dois pés, duas mãos, dois olhos, e duas orelhas. Antes de me levantar, eu chequei se ainda estava tudo no lugar… e eu perdi alguns pedaços. Mas eles crescem de novo. Eu tenho cauda de lagarto, e minha casa é o microondas. Eu Pelo menos eu ainda sei andar, sei seguir em frente, sei de onde eu vim, e prometo que não vou me esquecer.
Pela primeira vez em muito tempo, eu ainda estou pilotando algo muito maior do que eu consigo entender, mas dessa vez não estou fugindo de nada. Pela primeira vez em muito tempo eu sinto sono, mas sei quando parar. Sei quando ficar acordado, também, e sei que música ouvir no rádio. Sei como não me irritar com a estática, com os problemas de comunicação, e entendo as falhas técnicas. Eu sei como o tempo passa, sei pra onde rodam os relogios, e não sei pra qual lado a Terra gira, mas sei o que fazer se ela parar.
Eu não tenho mais toda aquela pressa de chegar em primeiro lugar. Meu banco é reclinável, e desde que vocês estejam aqui comigo, eu não vejo problema em esperar essa chuva passar, parado no acostamento. Segurança em primeiro lugar. Pela primeira vez em muito tempo, eu estou gostando de onde estou indo, mesmo não sabendo onde é. A vida é o que acontece enquanto você está planejando outras coisas.
Felicidade é a palavra que a gente escolheu pra simbolizar uma sensação parecida com aquela de jogar um monte de bolinhas amarelas escada abaixo. Não da pra explicar, é só uma emoção mesmo. Você vê tudo caindo, espera elas pararem, e bate palma no final. Então desce para recolhe-las, e joga tudo de novo.