R (COMO CONTAR ATÉ “AMOR”):
Eu moro no meio de um deserto. É um cemitério de ideias que eu tive quando eu era pequeno, um monte de planos antigos enterrados na areia, amontoados e acumulando poeira igual um monte de lixo. São algumas coisas que eu queria fazer quando crescesse, e que agora que eu cresci, botando na prática, parecem muito mais difíceis do que pareciam quando eu era menor. Eu também consigo me lembrar de algumas pessoas que passaram por aqui, mas que se mudaram e deixaram só umas pegadas vazias, esfriando na areia. E acima de mim, tem só a droga do Sol. Tornando isso tudo um inferno, rindo de mim com seu sorriso idiota e seus braços de fogo, apontando dedos e se divertindo enquanto tudo que eu queria era fugir daqui. Ele fica escondido atrás de um óculos escuro, ora fumando um cigarro, ora mascando um chiclete. E as vezes, no meio do dia, eu ouço os leões, as hienas, e o diabo. Eles gritam, riem, falam alto demais, então eu me escondo debaixo do lixo que eu deixei por aí, e torço pra que não me encontrem dessa vez. Tem um monte de textos também, e desenhos, todos feitos com meu próprio sangue, e deixados pela metade, em cima das dunas, enterrados no chão. Eu faço um sacrifício diferente sempre que eu crio algo, como se passasse uma adaga, horizontalmente, no meu estômago, e despejasse meus órgãos vitais em um prato, pra quem estiver com fome e se perder por aí. Algum dia meu sangue vai acabar, mas espero que seja o suficiente pra pintar um deserto inteiro de vermelho.
No fim das contas tudo o que eu falo chega sempre no mesmo lugar, do mesmo jeito que eu faço andando em circulos ha quase vinte anos perdido nesse deserto. As palavras passam pela minha corrente sanguínea e sempre acabam naquele lugar onde todas as veias se encontram, escondido na caixa toráxica. E é engraçado que são sempre palavras. Não da pra contar até Amor usando números.
Quem diria. Estou fazendo isso agora… Eu juro que não é tão bonito quanto você imaginou. Na verdade não tem absolutamente nada de bonito, é terrível, é perverso, é doente, é um inferno total. Meu coração é vermelho, é agressivo, e é da cor do sangue que escorre do meu nariz, quando o ar em volta é tão cru que parece metal derretido. E eu estou sufocado por todas as cores que eu já conheço. Queria que tivesse uma oitava, uma nona, até mesmo uma décima no arco-íris, e as misturas delas também. Queria que a força da gravidade fosse um pouquinho menor, e queria que a gente tivesse mais de uma lua. Eu queria nascer de novo, na casa de outra pessoa, com um coração que bate em um compasso um pouco menos óbvio. Eu cansei do 4 por 4. Eu cansei desse século, das máquinas, do dinheiro, da Inteligência Artificial e dos carros que dirigem sozinhos. Cansei do ano-novo, cansei do Natal, cansei do meu aniversário.
G (O QUE ACONTECE QUANDO VOCÊ IGNORA SEUS PROBLEMAS POR TEMPO SUFICIENTE):
Eu observo tudo daqui, deitado debaixo do tapete junto com todas as coisas que algum dia eu chutei pra cá. É quente, pesado, reconfortante, e se você ignorar o cheiro de mofo, é quase como uma cama. As vezes eu tomo meia dúzia de cápsulas, conchas, balas, gotas, goles, e estou pronto pra dar uma volta do lado de fora, e eu lembro que tenho um gato, lembro que meu aniversário está chegando, lembro de limpar o lodo da piscina. Se você espera tempo suficiente, começa a crescer vida morta em toda superfície habitável. É incrível como a natureza não respeita nosso espaço pessoal. Ele cresce nas beiradas da casa, pelos muros, tenta entrar pela porta, as trepadeiras se esgueiram pela chaminé e invadem a sala de estar. As janelas ficam esverdeadas, e tudo do lado de dentro fica com esse tom meio enjoado. As plantas escondem os quadros que você pendurou, engolem sua cozinha, seu quarto, o corredor, e o banheiro. Elas se deitam na sua cama mesmo se você não deixar. Mas se elas querem tanto, quem sou eu pra tirar de lá… Vai ver precisam mais do que eu. E qualquer coisa eu tenho o tapete… Quer dizer, todas minhas coisas estão lá embaixo, de qualquer jeito. E fica tudo meio úmido. É como se estivessem chorando. Pelo menos isso ameniza o verão. As lágrimas são quentes, mas o ar fica fresco alguma hora. Se alguém vai respirar nessa casa, que pelo menos sejam as plantas… Deus me livre de ter que fazer isso também. Já é tarefa demais pra mim.
E do lado de fora eu teria alguma coisa pra fazer, se já não vivesse no meio de uma floresta. Ainda me lembro de quando me mudei pra cá. Acho que do lado de lá tinha um vizinho, e do lado de lá passava uma avenida, mas eu deixei tudo crescer, sem cuidado, pra todas as direções. Minha casa é como uma explosão disforme de todas as coisas, pra todos os lados. Algumas pessoas olham, acham que estão vendo um rosto, outras um elefante, e de vez em quando um disco voador. É como uma nuvem… Não faz muito sentido, mas se você se esforçar demais encontra alguma familiaridade. Você pode até escrever um texto sobre isso, se souber usar as palavras certas. Não é tão bonito assim, mas falando de um certo jeito você convence todo mundo.
Quem diria. Estou fazendo isso agora… Eu juro que não é tão bonito quanto você imaginou. Na verdade não tem absolutamente nada de bonito, é terrível, é perverso, é doente, é um inferno total. Meu coração é verde, é venenoso, é da cor dos meus olhos, quando eu estou chorando. E eu estou sufocado por todas as cores que eu já conheço. Queria que tivesse uma oitava, uma nona, até mesmo uma décima no arco-íris, e as misturas delas também. Queria que a força da gravidade fosse um pouquinho menor, e queria que a gente tivesse mais de uma lua. Eu queria nascer de novo, na casa de outra pessoa, com um coração que bate em um compasso um pouco menos óbvio. Eu cansei do 4 por 4. Eu cansei desse século, das máquinas, do dinheiro, da Inteligência Artificial e dos carros que dirigem sozinhos. Cansei do ano-novo, cansei do Natal, cansei do meu aniversário.
B (MAIS UMA NOITE NO AQUÁRIO):
Desde que eu nasci, eu me sinto como se tivesse uma âncora amarrada no pé. Quando eu era menor, a água chegava só até meus joelhos. Eu sempre soube que ela ia subir algum dia, mas também me contaram que eu ia crescer, então isso tudo nunca foi uma preocupação. Coitados dos meus dois pulmões, que tiveram que ouvir essa mentira, e agora se encontram no fundo do oceano pacífico sendo pressionados por uma coluna quilométrica de água salgada. Eles não guardam rancor, mas eu guardo. E eu não gosto disso, mas é da minha natureza. É coisa do pior signo de água, o que mais se parece com o barulho que as ondas fazem quando quebram na praia, e depois voltam chorando pro meio do mar. Aquela constelação que muda de humor o dia inteiro, e corre veneno e água salgada pelas veias. Dizem que não da pra se banhar no mesmo rio duas vezes, e eu digo o contrário. O rio que não consegue me banhar duas vezes. Sempre que eu pisar lá eu vou ser diferente, e boa sorte pro tal do rio me acompanhar.
Talvez seja parte do meu amor pelo oceano… Talvez seja meu medo de me afogar. Talvez seja o sentimento que me cerca de que tem alguma coisa errada com o ar em volta de mim, tem alguma coisa errada com a forma e a natureza das coisas, e, principalmente, o sentimento de que, se eu estiver errado, e na verdade não tiver nada de errado com nada disso que eu falei, então o problema é em mim mesmo. E, como a água ou as nuvens no céu, se eu mudar de forma o dia inteiro, algum dia eu vou achar a mais confortável. Mas pelo menos por enquanto eu ainda tenho meu aquário, com as quatro paredes em volta dele, com as coisas que eu colei do lado da minha cama. Ou melhor dizendo… as coisas que grudaram do lado da minha cama. Eu juro que não coloquei nada ali… um dia eu acordei e minha cabeça tinha explodido. Está vendo? Eu sei deixar as coisas muito mais dramáticas do que elas realmente são. A luz bate na minha parede, mas só o azul é refletido. Meu cérebro interpreta isso do jeito que ele quiser, e diz… “isso aqui é azul!”. Está vendo? Eu sei deixar as coisas muito mais dramáticas…
Quem diria. Estou fazendo isso agora… Eu juro que não é tão bonito quanto você imaginou. Na verdade não tem absolutamente nada de bonito, é terrível, é perverso, é doente, é um inferno total. Meu coração é azul, é triste, é da cor da corrente elétrica que corre pelos meus neurônios tentando fazer alguma sinapse, quando nada em volta faz sentido. E eu estou sufocado por todas as cores que eu já conheço. Queria que tivesse uma oitava, uma nona, até mesmo uma décima no arco-íris, e as misturas delas também. Queria que a força da gravidade fosse um pouquinho menor, e queria que a gente tivesse mais de uma lua. Eu queria nascer de novo, na casa de outra pessoa, com um coração que bate em um compasso um pouco menos óbvio. Eu cansei do 4 por 4. Eu cansei desse século, das máquinas, do dinheiro, da Inteligência Artificial e dos carros que dirigem sozinhos. Cansei do ano-novo, cansei do Natal, cansei do meu aniversário.
K (KEM FOI KE TIROU O PINGO DE CIMA DO “I”?):
Pra minha geração, as cores primárias são vermelho, verde e azul. A gente vê arte em forma de luz, na frente do computador. A culpa disso é do Sir Isaac Newton. Antes dele cor era pigmento, mas ele inventou de inventar que as cores não estão nas coisas que a gente observa, e sim no jeito que seu cérebro processa a luz que encosta no seu olho. Eu não sei se isso sempre foi tão claro pra vocês quanto foi pra mim, mas, do meu ponto de vista, o céu nunca pareceu se encaixar na terra. Principalmente nas beiradas, onde os prédios se encontram com as nuvens causando esse desconforto inatural. Do mesmo jeito que pra mim isso tudo sempre pareceu uma fachada muito bem desenhada pra um núcleo caótico, como os traços pretos que prendem as cores nos desenhos animados, e as leis da física que me prendem do desejo de simplesmente sair voando por aí. E cores não existem de verdade, elas são só um jeito que a gente interpreta tudo isso. E emoções não existem também, elas são só reações químicas acontecendo em escalas moleculares. Isso tudo sempre me causou desconforto, principalmente no mundo material, onde, de noite, principalmente quando eu não quero, as superfícies macias parecem ser meio ameaçadoras.
Mas essas são as leis da física, do jeitinho que Sir Isaac Newton as inventou. E eu gosto de escrever porque entre essas letrinhas pretas eu posso escolher minha própria lei da física, com minhas próprias regras. Isso aqui é literatura punk, colocando os dois pés em cima da realidade e escolhendo acreditar no que eu quero. E com o outro pé na literatura mais preguiçosa possível… eu não estou tentando te convencer de nada. Na verdade eu nem queria estar aqui. Meu medo é escrever a mesma coisa em todo papel que eu encostar uma caneta, ou sempre que meu dedo tocar o teclado enquanto a luz do computador frita meu cérebro. No final, eu estou só tentando falar a mesma coisa várias e várias vezes, usando palavras diferentes. Eu tenho medo de cair em um buraco escuro de significado e simbolismo, quando na verdade tudo que todo mundo tem escrito esse tempo todo é só… “uma afirmação simples sobre paz e amor, mas de um jeito sexy que não seja muito óbvio”. Freud diria que Tom & Jerry é só um jeito muito tímido de falar sobre sexo.
A culpa por eu saber articular toda essa merda que inventaram em forma de palavras são dos senhores Lennon e McCartney, e também do senhor Edgar Allan Poe, do Sr. Dylan, das cores primárias, do Alvin, e dos Esquilos, das montanhas de Minas Gerais, e da Internet, mas, com certeza absoluta, não é da Escola. Essa eu culpo por ter os dois lados do meu cérebro trocados. Eu tive meia formação franciscana, e agora eu não sei o quanto da extinção da arara-azul é minha culpa, e o que eu realmente fiz de errado. Mas me disseram que dor põe a gente mais perto de Deus. Mentira.
Eu culpo minha cidade, por me fazer sentir no lugar errado esse tempo todo. Eu culpo a geografia por estar tão longe do mar, e a gravidade da terra, por estar tão longe do céu. É impressão minha o Sol ficou menor ano passado?
“Alguém para a Terra, eu acho que vou vomitar.” — Disse um cara muito pequeno, em pé em algum lugar de uma bolinha azul no espaço. Deus só soprou ele pra fora, e adivinha… a Terra continuou girando. Mas é isso, e sempre vai ser o que acontece quando a gente para de girar. A inércia joga a gente pra fora, e a gravidade não está ligando muito pra te segurar no chão. Você é arremessado pra longe, sem foguete, sem roupa brilhante, sem nome, sem o Stanley Kubrick atrás de uma câmera gravando o que você fez, sem jornada do herói, sem alívio cômico. Se você der sorte, tem créditos finais, mas só isso… E ninguém fica pra ver os créditos finais. A Terra continua girando com todo mundo que ficou lá pra ver o que acontece… e é isso que ela faz. Ela gira, ela faz umas acrobacias insanas. Ela fica de cabeça pra baixo, dependendo do seu ponto de vista. E gira pro lado errado se você começa a trocar o dia pela noite, e, se deus te sopra pra fora, o universo observável troca de pele e vira do avesso. Você começa a achar todo mundo feio, perde a noção do tempo, começa a andar de costas, e começa a esquecer onde você deixou suas chaves, também. Você esquece que deixou seu coração na geladeira, esquece seu nome, esquece de onde você veio, e esquece quem você queria ser quando era criança.
Seja legal sempre que te derem a oportunidade, e não só quando te derem um motivo. Olhe pros dois lados antes de atravessar a rua, e amarre os sapatos. Lembre-se que o Sol não está rindo de você… ele esta rindo com você.
Olha só. Eu disse que ele estava “em pé em algum lugar da bolinha azul”, mas, cá entre nós, a gente sabe que isso é mentira. Não existe “em pé” nesse ponto de vista. Não tem pra baixo nem pra cima, não tem direita nem esquerda, não tem nem o deus que eu falei. Foi só uma figura de linguagem, e nem isso tem também. Como o cosmonauta Vladimir Komarov disse em suas últimas palavras antes de explodir no céu, “все сломано в ящике дьявола”, ou “está tudo quebrado na caixa do diabo”. Mandaram ele pro espaço, e ele chegou mais longe que o Yuri Gagarin. Explodiu depois, mas ficou por lá mesmo. Eu e ele invejamos quem ainda está com os dois pés firmes no chão.
Aqui estamos novamente, na superfície da Grande Bola de Golfe, voando pelo espaço, e literalmente andando em círculos em volta do Sol. No mesmo ponto que a gente estava no ano passado, e antes disso. Falando a mesma coisa que eu falei no último parágrafo, e no outro, e nas outras três partes desse texto… Mas sempre com a sensibilidade de usar palavras diferentes pra dizer a mesma coisa. Do mesmo jeito que nossos pais fizeram, e nossos avôs, e também todo pássaro ou criatura rastejante que já existiu. Na verdade, estamos todos objetivamente andando em círculos esse tempo todo. As vezes eu sonho em encontrar pessoas que passaram por mim quando estávamos nesse mesmo ponto da órbita, ha algumas voltas atrás, mas elas nunca parecem estar no mesmo lugar. Ok… Eu também não estou. A gente esquece que o sol também deve estar orbitando algo muito maior que ele, e, assim, a gente nunca passa pelo mesmo lugar. Todo dia a gente veste a máscara que fica na jarra perto da porta, e eu tenho várias. Eu tive a brilhante ideia de fazer isso uma vez, quando eu era pequeno, porque se eu trocasse de máscara constantemente ninguém ia saber quando eu estivesse sem nenhuma. Mas máscara não é assento ejetor, e no final do dia eu continuo por aqui. Espero que vocês se acostumem.