Sobre peixes e skates:

Hoje eu lutei com um escorpião no assoalho. Tem sempre algo debaixo dos meus pés, seja rastejando ou dizendo com voz mansa que vai ficar tudo bem, está sempre por ali fazendo cócegas. Ele vai do lado esquerdo pro direito, carregado de significado, pensando no próximo passo e dizendo o que eu devo fazer. Ele corre, mas não foge. Ele incomoda, mas não dói, ele vive, dá risada, sussura pelo ouvido, fura parede, comete crime, joga culpa, perde a cabeça, faz um nó, blefa no baralho e escorre pelo nariz. Outra coisa que faz cócegas: A lua. Ela fala com voz mansa. Eu levanto com a maré alta. Enquanto a espuma se ergue de noite, feroz, pra fazer buraco e afundar veleiro, eu tiro o lençol, dou alguns passos, apago a luz e volto pra cama. Minha guerra é aqui dentro, mas a bandeira branca também é.

Debaixo do meu lençol, lutando pra me agarrar no tempo presente. Quando seguro, ele escorrega. Quando escorrega, eu lamento. Quando eu lamento, esqueço de olhar pros dois lados pra atravessar a faixa, e quando vejo acabou o tempo. É surf ao vivo, no mundo real. Me ensinaram muitas coisas, mas tudo que eu aprendi foi andando de skate, e com peixinhos no mar.

Se meus sonhos pudessem ser vistos, me botariam na guilhotina: No fundo da gaveta, dois carinhas muito pequenos jogam baralho. Um deles é um cientista, e o outro é um poeta, mas não gosta de usar essa palavra porque acha isso reducionista, e ele é tão pequenininho que se fosse reduzido sumiria de vista. Os dois usam chapéus pontudos, mantos largos, barbas brancas, e são bem amigos. O cientista descreve as coisas. Ele lista todas as espécies, fala dos astros, fraciona o tempo, cheira flores, entende o espaço, a ordem, a comunicação, as lunetas e as antenas parabólicas. Ele explica que, no final, não tem explicação. Afinal, não sabe. Descreve tudo, mas não entende o que é, nem quando cheira as flores. O outro boceja, cai no sono. Acorda e diz “é tudo um poeminha!”. Some de vista.