transição

theo (mac)
6 min readNov 23, 2023

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setembro começou mais uma vez, e, mais sincera que um espelho, a única coisa que me vê nos primeiros minutos depois que eu acordo é a impressão que uma árvore com flores amarelas causa nas minhas sinapses. O que ela fala pra mim é o que eu grito, em busca de eco. Eu pergunto quanto tempo isso ainda vai durar, e as paredes em volta reverberam dizendo que ainda vai demorar muito tempo pra acabar. Paciência.

Talvez, crescendo entre todos esses anos, o lugar onde eu encontrei mais conforto tenha sido ocupando um ponto de vista tão microscópico que eu precise de condições muito especificas pra crescer alguns centímetros pros lados que eu quero. Nem consigo me permitir desejar algo no mundo real, porque, do jeito que sou agora, não me sinto tão real quanto ele. Talvez uma superfície diferente, em outra realidade, começando ha muitos anos atrás, com uma genética diferente, um corpo diferente, uma história diferente, a voz um pouco mais alta, ouvidos um pouco mais abertos pra mim, todas as moléculas reorganizadas e encaixadas de um jeito que faria um pouco mais de sentido. Eu nunca aprendi a fazer a ciência ser um lugar de muito conforto – na verdade eu preferia treinar uma posição especifica, a cabeça deitada, com os olhos fechados e desejando estar dentro de uma nuvem, me imaginando em outro lugar, com as mesmas pessoas, os mesmos olhos, mas um universo alternativo onde os olhares são, e sempre foram, diferentes sobre mim – mas talvez, talvez mesmo, se alguém apontar uma lupa pra uma superfície qualquer, consiga ver o lugar onde minha cabeça descansa no dia-a-dia. É nas coisas pequenas, mas é, principalmente nas coisas grandes que passam despercebidas, invisíveis a olhares que se recusam a ver sutileza nas moléculas que podemos encostar, ou que só veem a superficialidade do imenso, onde eu encontro fantasia no mundo real. No espaço real entre a gente, enquanto ocupamos o ar. Na matéria inanimada, onde eu encontro espaço pro meu próprio movimento. Lugares onde eu grito, e lugares que permitem que minha voz ecoe. Como diria o Agente Dale Cooper, é no som que o vento faz entre as árvores, e na senciência dos animais, além do tabuleiro, vendo a vida com amor. Quando eu olho num enquadramento maior, pra um lugar ocupado pelas coisas menos mundanas pra mim, lugares de mega estruturas de engenharia, relações diplomáticas, gravatas e apertos de mão, documentos assinados, motores de carro, grandes eventos históricos e arranha-céus, eu lembro que preferiria rearranjar minhas moléculas, de um jeito que fosse um pouco mais confortável, porque eu simplesmente não existo nesse lugar, apesar de terem me treinado pra isso. É só isso que eu queria dizer.

Uma das menores coisas que eu conheço é o tempo, esse eu consegui fracionar em pedaços muito pequenos, e eu sinto profundamente cada um deles, sempre que alguém transita os olhos por mim. Toda vez que cai o silêncio, uma sombra fresca, ou uma pausa entre tópicos pra pegar um pouco de ar, eu entendo onde o tempo está sendo partido, e como uma criança sendo degolada em cima de uma montanha, eu sinto muito. Quanto mais longe eu vou, mais tarde é, e mais eu me separo do nó onde essa ramificação aconteceu, onde eu poderia ter sido quem eu não sou agora, e vocês sabem, fica mais difícil a cada dia que passa. É realmente muito doloroso expressar a dor que isso me causa, e eu já tentei de muitas formas diferentes, sempre de um jeito que não envolva minha garganta reverberando perturbações no espaço, porque eu não gosto do som da minha voz, principalmente quando fazem silêncio. Eu recorri a imagem, ao movimento, e ao som que eu faço com as devidas ferramentas pra isso. Devo minha vida a isso, é serio. Se eu não posso rearranjar as minhas moléculas, eu faço isso ao espaço em volta, com sons, letras ou pixels. Arte pra mim é vingança. Ao saber do poder que a gente tem pra isso, e conhecendo as ferramentas, todo mundo pode distorcer o espaço ao seu próprio alcance, e pra mim essa é a coisa mais bonita no mundo inteiro. Liberdade verdadeira, e eu estou falando sério, você deveria tentar.

A partir do momento que essa realidade se parte em duas, e a que eu existo agora é um caminho sem saída, em direção a um ponto onde eu não me vejo, nunca me vi, e prefiro não me ver existindo, então olhar pra trás de forma seca, lamentando algo fora do meu controle se torna apenas uma neurose. Não é esse o meu ponto, também. Não quero lamentar nada, não quero olhar pra trás com tanto pena assim. Posso existir agora no contraste, e transformar meu deslocamento em um espaço de conforto, e estou muito feliz com a descoberta dessa habilidade, que sei que tenho desde criança mas não sabia que podia usar pra isso também. É essa a palavra que eu estava procurando: transformação. A primeira carta do baralho, etc. Nesse lugar eu existo.

Um dos lugares mais confortáveis pra se deitar é em longas viagens de carro, no banco de trás. Onde todo ponto se torna um traço, contrariando tudo que é fixo, e todo mundo que quer que seja. Um lugar de dois lugares, que não ocupa lugar nenhum além de si mesmo. Um lugar que da a chance de reimaginar tudo que veio antes, e não precisa se segurar no que vem depois, porque o que importa é o movimento, a transição. Mastigando um salgadinho no ritmo de qualquer coisa que esteja tocando no rádio, e fazendo de refém qualquer um em volta, pego por um fluxo de matéria e consciência que corre na mesma velocidade das rodas girando ao redor do peito de aço. Um estado de ação onde estamos todos num percurso. Uma perturbação no espaço que se manifesta como um estalo, mas que, olhando de perto, foi onda, e houve movimento. Um espaço entre algo que aconteceu antes e algo que vai acontecer depois. O contrário de inércia: Trânsito. Esse tipo de deslocamento é comum pra todo mundo, estamos todos lidando com isso o tempo todo, cada um da sua maneira. Por que tornam o meu tão difícil?

Porque nesses lugares eu só faço conforto quando tem alguém me vendo pelo retrovisor, quando alguém sabe que tem alguém com os olhos abertos aqui atrás, me dando apoio, revezando o volante, e me acompanhando na viagem (estamos todos indo pra algum lugar, afinal). Mas eu não tenho me sentido aqui, enquanto não me dão liberdade pra tentar transformar. Nem quando estou em cima de um palco, nem quando estão em silêncio me esperando falar. Talvez meu lugar de conforto seja debaixo de um teto enquanto cai uma tempestade, numa conversa sóbria, olho no olho, depois que a nossa existência compartilha a experiência de estarmos nós 2 molhadas. Com esses outros lugares existindo la fora, mas comigo existindo onde estou mais confortável, fora dessa batalha incansável de leituras, interpretações, argumentos e essa busca neurótica pela síntese. Não quero ter um ponto, quero ser um travessão, um movimento, e uma prova absoluta de um tipo de magia, que prova que todas as coisas realmente importam, e que existe de forma sincera, concreta e real, se você olhar com cuidado. De repente minha voz é um conta-gotas na chuva, e eu sinto que meu coração fala o que eu quiser falar. Você conhece algo mais confortável do que uma multidão tão grande, com tantas histórias, tantas aparências físicas, tantos olhos, boca, nariz, perna e braço, que o jeito que te organizaram é só um acaso especifico onde seu cérebro caiu, entre essas orelhas? Eu não conheço.

Mentira, conheço sim. Imagina essa multidão dormindo. A transição mais importante de todas. Silêncio. Olhos fechados.

Isso não é pulsão de morte, é pulsão pra uma vida que nunca tornaram viável pra que eu ocupasse em outro lugar que não fosse num ponto vazio no céu, onde meus olhos miram e se prendem quando estou sonhando em pleno dia. Em outro universo, moléculas se reorganizam, quem sabe. É aqui que eu queria existir agora: -_- zzZzzZzz

Sonhar com o presente é muito divertido, mas não sustenta uma vida por muito tempo. Eu preciso dos meus pés no chão e ação no mundo real, então amanhã eu acordo um pouco diferente, um pouco mais perto de onde gostaria de estar. E depois de amanhã um pouco mais. Trânsito. Sem me preocupar no destino, e tentando não pensar que é tarde demais pra existir movimento. O sonho, agora, fica pra trás, mas não quero dizer que ele acabou. Significa que ele finalmente pertence a mim, porque eu finalmente posso criar a narrativa que eu quiser, quando achar que devo contar de onde eu vim. Quem mais lembra ha anos atrás, quando eu era uma onda de luz no espaço? Nascida em movimento, e em movimento agora, até hoje, e depois que morrer… também.

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theo (mac)

o universo observável troca de pele e vira ao avesso