No segundo seguinte, tudo que eu sabia é que eu tinha 22, segurando com força algo nas mãos, em pé na grama alta e assistindo um jardim pelo ultrassom. Com uma estrela na coleira e uma faca entre os dentes. As vezes me pego pensando em como vim parar aqui, me contorcendo entre paredes. Estou sempre entre paredes.
Passei mais tempo na autoescola do que na faculdade. Odiei os dois processos, e tem muito tempo que não encontro um jeito seguro de me encaixar no mundo real. E falo disso pensando nas pequenas molduras da vida. Conversas rápidas, elevadores subindo e descendo, portas abrindo e fechando, pessoas que eu poderia conhecer, experiências que nunca me propus a participar, condutas que me colocam na posição de deslocamento, sempre. Sempre tentando existir no meio, mas sempre existindo do lado de fora, observando. Já me cansei disso. Em algum momento deve ter sido uma opção, hoje é uma âncora na garganta.
Por que eu escrevo de forma tão críptica? Porque a vida é um enigma. Por que eu estou sempre desviando do assunto? Porque eu prefiro que me peguem pela mão e me levem exatamente onde eu quero. As vezes é bom reiterar isso, quem decide sobre mim são vocês, e eu decido sobre vocês também. Esse é o jogo. Eu tenho um ponto, mas ele é só meu. Vamos fazer diferente dessa vez? Leiam minha mente agora.
Sempre que quero falar de forma sincera me colocam no mundo real de novo. Pra mim, todo mundo sempre foi uma ilha. Nunca me propus também a desvendar nada. Não quero respostas. Não quero absolutamente nada concreto. Queria ser mais maleável e queria que as outras pessoas também fossem. Se a gente se organizasse assim, talvez ficasse mais confortável pra todo mundo. Esse é meu ponto. Respeite o próximo, cuide da sua vida, ajude como você puder, respeite pronomes, tome muito cuidado, abrace seus amigos e trabalhe menos. A vida é uma experiência única, transição constante de um ponto A até um ponto B. Estamos todos desfigurados. Ninguém fica confortável parado, estamos sempre em movimento. Rodas girando, e falhando sempre.
A vida é um enigma, mas não segue padrões. É tudo aleatório e absurdo então faz o que você quiser. Escolhe sentar onde seja mais confortável, assista e participe como quiser. Não tem resposta. Por exemplo, esses dias eu tenho achado tudo muito feio, grotesco, e ansioso. Tenho percebido meu corpo como uma almôndega gigante voando em cima da cidade, com holofotes apontados, escorrendo sangue, e todo mundo gritando. Uma vez eu sonhei que era domingo à tarde, na beira da piscina, cheiro de churrasco, cerveja na mesa, e o sol la em cima, torrando tudo embaixo. Ninguém falava nada, mas a gente sorria, então devíamos estar na pausa pra respirar entre assuntos nem um pouco sérios. Foram se levantando de um a um. Sobra só eu e um cão imenso, rosnando, embaixo da mesa, com os dentes cravados na minha perna. Ele olha pra mim com seus olhos amarelos. Um relógio corre em algum lugar, e o sol decide se por no horizonte. Os olhos do cachorro agora são azulados, e ele morde com cada vez mais força. Nunca ouvi tanto silêncio na vida. Lembro que é hora de ir, porque somos minúsculos pro horizonte do tempo, eu e o cachorro, que nesse ponto somos muito íntimos sem nunca sequer termos trocado uma única palavra. Decido quebrar o pacto e peço educadamente pra ele se retirar. Ele morde mais forte. Peço de novo. Ele morde mais forte. Pego meu celular pra me distrair. Ele morde mais forte. Começo a chorar. Ele morde mais forte. Corro meus olhos pelos únicos lugares de repouso que eu encontro, a piscina, o céu azul desbotado, a poça de sangue no chão, minhas meias manchadas de vermelho, o pelo grosso do cachorro, a baba escorrendo pela boca, o sorriso de canto, e o rosnado leve, que só consigo ouvir agora que faz silencio. Ele morde mais forte.
Só decide soltar quando eu estou prestes a acordar, e isso demorou muito, pois era sábado de manhã no meu quarto. Quando solta, tem um dente canino imenso cravado na minha perna, e eu nunca senti tanta dor. Meus olhos lacrimejam enquanto ele caminha pra longe. Quando eu acordo, coloco a mão na perna procurando o dente, porque queria guardar de recordação. Não está mais lá. Que pena.