UM DIA RUIM PARA ESTAR DEBAIXO DESSE BONÉ:
São 02:33, e a primeira sensação é algo efervescendo atrás de você. Um cordão fino como fio dental, amarrado na ponta de um neurônio, laçado na base de um arco-íris, deslizando em alta velocidade na Prudente de Morais. Ela quebra. Ela corta. Te joga pra fora. “Chegou o dia” — Ela sussurra. Em outro universo… uma grande fuga: Subir rua acima, sair pra caminhar. A manhã é sua. Nesse universo: Nada demais. Aperta os olhos e se lembra da promessa: “Dou o que for preciso pra sair daqui. Eu só preciso de uma cerveja por dia.” Ela envolve um plano de fuga sutil, uma matemática de espião. Um paraquedas debaixo do banco, um assento ejetor, uma passagem secreta, um laboratório atrás do armário. Ela te segura pelas mãos, te eleva no ar, gira até te deixar tonto, faz uma órbita completa, e te mata aos poucos. Quando a aterrissagem acontece, ninguém nem sabe que você saiu. Ufa. Você volta. Ufa. Ninguém mais viu nada? Ela arquitetou um plano de fuga sutil. Como a espuma do mar… saiu tudo como planejado.
A segunda sensação é uma urgência de gritar que tem algo errado, que vem montada em um estilete e percorre sua língua de forma indelicada. Você aperta os maxilares. Cerra os molares. Lembra: Faca nos dentes. Você se contorce, se dobra, vira ao avesso. Uma azeitona olhando pro caroço, e agora que está do lado de dentro… grita com força. “Faz o que quiser, mas não deixa ninguém ver o que acontece aqui dentro. Eles te odeiam”.
Na verdade, eles te rejeitam. Não é nem que eles preferem te ver morto! Na verdade, eles simplesmente não querem te ver. Eles não querem nem saber sobre o que você tem pra falar. Eles não querem ouvir você cantando. Eles não se importam com isso, eles não acreditam em mágica. Eles não querem que você acredite. Eles não acreditam em você. Você não faz parte do pacto. Você não sabe os passos da dança, você não sabe as tradições. Você é um estranho fora da roda. Um ponto fora da curva. Você não fala a língua deles. Vocês não tem o mesmo sangue, vocês não são a mesma coisa. Não tem mais nada aqui. Seu contorno é tracejado. Eles agem como se você fosse invisível, e dessa vez você queria ser.
A terceira sensação é o último pensamento que cruza entre seus olhos antes de você cair no sono. Você não se lembra dele, mas ele está lá. É um ponto cego. É o centro disso tudo. Uma coceira que você não alcança, porque fica no meio do seu coração. É uma memória de infância que você perdeu, que não tinha ninguém lá pra tirar foto. A razão pra todas essas palavras terem um peso. É uma sequência, de meia dúzia delas, que vai tirar do seu peito tudo aquilo que você precisa colocar pra fora antes de sair daqui. É um atalho, pra terminar seu dever aqui mais cedo. É o gosto que a vida real tem, são as cores do último segundo já feito. É alguém tentando pular em um trem em movimento. É pensar sobre pensar. É pensar o quanto é estranho, as coisas que a gente pensa. É pensar em achar estranho o que existe. É tentar dar um sentido pra última coisa que aconteceu. É se perder em tempo real. Não estar aqui, ao vivo. É se perder em tempo real, e transformar seu caminho de volta em um grande espetáculo. É pular em um trem em movimento, e é falhar miseravelmente. Não queria ser tão claro assim, mas é Arte. Transformar o espaço. Provar que você está vivo. Gritar no banheiro, e ouvir o eco, como se fosse uma sinfonia. É culinária desconstruída. Os amigos que você faz no caminho. Notas invisíveis; Jazz. Uma pausa pra respirar. Rabiscar na borda do caderno, entre os horários. É você. É o você que sabe seu próprio alfabeto. (Meus segredos). Mas dizendo algo que vocês já sabem.