VOOU PRA LONGE:
Seis e cinquenta de uma noite de sábado, e o sol deixa de ser importante. Lá longe é um bolinha colorida com asas brilhantes, se alimentando de folhas verdes, mas voando pra longe daqui. Meu coração é um espectro no horizonte, asas coloridas, sim, mas cada segundo mais longe. Aqui perto o que importa são as formas das coisas, como elas são agora, como os objetos sempre fizeram por mim. As formas que existem agora, e sujeira no fundo dos bolsos do casaco, pontas soltas, planos pra um futuro que não volta, e meu quarto, como sempre. Um espaço que sempre foi assim, escuro. Vida ao vivo, mas agora lembrança. Histórias que trocaram de forma por um punhado de dias, mas nesse instante, agora, eu lembro como eram. Dar esse passo me coloca numa posição que eu não queria… Mas que as páginas novas do calendário me anunciavam há muito tempo: Preso dentro de um jogo de ideias, uma caça por pedaços, partes, fragmentos, cor e poeira solta correndo ao vento, devolver objetos, dizer adeus, membros decepados, desmonte, suor no chão e saudade, que eu vejo o tempo inteiro entre meus dedos, mas que agora tem um sentido diferente nesse pôr do sol. É igual nos desenhos animados: 11 minutos, ação, reação. O Coyote, correndo em direção a um penhasco. Ele só cai quando olha pra baixo, e eu só sofro quando eu olho em volta. Contornos escuros. Última chance. Uma risada no final. Saudade de um verão no horizonte, de uma praia nas férias, um café passado, um sorriso, alguns nomes, uma chuva, primavera, verão, outono, inverno, nessa ordem, mas cada vez trazendo algo diferente. Saudade de uns gatos, uns também que nem nasceram mas que existiram no futuro, entre meus olhos fechados e meu travesseiro. É isso que sobra, e eu guardaria numa caixinha colorida pra, quem sabe, mostrar pros meus netos algum dia. É pra isso que eu cheguei tão longe? Fantasmas no bolso, um brinde. Não mudou nada. É boliche descalço.
Não adianta gritar, isso eu aprendi cedo. Se você ama deixa ir, e se foi bom… valeu cada segundo. Experiências não são acumulativas, elas existem por um segundo, e depois vem outras. Não da pra empilhar sentimentos, e não da pra abraçar uma memória. Elas passam com o vento e você atravessa elas. Se der sorte, elas atravessam você. Tem um aperto de mão e um “prazer te conhecer”. Foi um prazer mesmo, foi bom enquanto durou. Se tiver uma segunda chance, a gente se vê por lá. Se não tiver, acontece. Vamos brincar de faz de conta? Eu sou o ascendente em sagitário. Você vive, e eu deixo viver. Só tenta não me dar um nó dessa vez.
Sexta a noite, na janela de alguém. Mais um fim de semana, igual acontece umas quatro vezes por mês. Copos de plástico, garrafas vazias, luzes coloridas, cinzeiro cheio. Meus amigos falando alto, do meu lado, mas por algum motivo bem longe daqui. O sangue correndo atrás das orelhas, agua nos olhos, poeira atrás das rodas, o peso de um acelerador. Festa! Risadas. Eu, bem longe daqui. O sol nasce. Só mais uma casa de alguém.
Ver mais do mesmo me incomoda, e me incomoda mais ainda ver o de sempre desaparecendo. Estou colocando a palma da minha mão em cima da mesa pra vocês darem uma olhada, porque eu juro que não tenho mais nada pra mostrar. Se um de vocês for bruxa, dou liberdade pra ler meu destino, porque agora sou cego. Eu seguro o céu, sobre os ombros, mas não agarro estrelas. Eu sou novo demais, mas mesmo assim, não falta nada. Tiraram partes de mim, a vida sussurrou um segredo, projetou uma sombra. Achei meu fantasma. Onde aquela borboleta foi? Voou pra longe. Noite de novo. Como em cima, igual embaixo. Submerso. Aqui eu fico pra sempre.